Pedro Maia Gomes

 

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José Régio

 

    Carta de Amor

    Adeus

    Ámen

    Poema do Silêncio

    Toada de Portalegre ( João Villlaret)

 

 

 


 

Carta de Amor

 

Ouve-me!, se é que ainda

Me podes tolerar.

Neste papel rasgado

Das arestas da minh'alma,

Ai!, as absurdas intrigas

Que te quisera contar!

Ai os enredos,

Os medos,

E as lutas em que medito,

Quer dê, quer não dê por isso,

Sem descansar

Um momento...!

Quem sofre - pensa; e o tormento

Não é sofrer, é pensar.

O pensamento

Faz engolir o vómito de fel...

Ouve! se sou cruel

Neste papel queimado

Dos incêndios da minh'alma,

é de raiva de que embalde

Te procure dizer sem falsidade

Coisas que, ditas, já não são verdade...

E procuro eu dizê-las,

Ou procuro escondê-las?

E procuro eu dizer-tas,

Ou procuro a vaidade

De mas dizer, a mim, de modo que mas ouçam

Esses mesmos que desprezo,

E cujo louvor me é caro?

Não me acredites!

O que digo,

Antes ou depois, o peso;

E não!, não é a ti que me eu declaro!

Sei que me não entendes.

Sei que quanto melhor te revelar

O meu mundo profundo,

O fundo do meu mar,

Os limos do meu poço,

O antro que é só meu (sendo, apesar de tudo, nosso)

Menos me entenderás,

Tu..., - a minha metade!

Por isso me não és senão vaidade,

Meu amor!, meu pretexto

Deste miserável texto...

Vês como sou?

Mas sou pior do que isto.

Sabe que, se me acuso,

é só por vício antigo

De me lamber as mãos e agatanhar o peito,

De me exibir a Cristo!

Sabe que a meu respeito

Vou além de quanto digo.

Sabe que os males que ora uso,

Como quem usa

Cabeleira ou dentadura,

São a pintura

Que esconde os mais verdadeiros,

De outro teor...

E sabe que sou pior!:

Sabe (se é que o não sabes)

Que ao teu amor por mim foi que ganhei amor.

Que a ti..., sei lá se te amo.

Sei que me deixam sozinho

Ante o girar dos mundos e dos séculos;

Sei que um deserto é o meu caminho;

Sei que o silêncio

Me há-de sepultar em vida;

Sei que o pavor, a noite, o frio,

Serão jardim da minha ermida;

Sei que tenho dó de mim...

Fica tu sabendo assim,

Querida!,

Porque te chamo.

Mas amar-te?!

Não!, minha vida.

Não! Reduziram-me a isto:

Só a mim amo.

Ama-me tu, se podes,

Sem procurar compreender-me:

Poderias julgar que me encontravas,

E seria eu perder-te e tu perder-me...

Ao menos tu..., desiste!

A sobre-humana prova que te peço,

A mais heróica!,

A mais inglória e a mais triste,

é essa..., - é este o meu preço.

Mais que o despeito, o ódio, a incompreensão

Dos por quem passei sereno,

Estendendo a mão afável

Ao frio, pérfido, amável

Aperto da sua mão,

Me punge,

Me pesa no coração,

O fruste amor dos que me interpretaram.

Ai!, bem quiseram amar-me!

Bem o tentaram.

Mas nunca me perdoaram

O não serem dominados

Nem poderem dominar-me...

E assim o nosso amor foi uma luta

De cobardes abraçados.

Entre eu e tu,

Tão profundo é o contrato

Que não pode haver disputa.

Não é pacto

Dum pobre aperto de mão:

Entre nós, - ou sim ou não.

Despi-me..., vê se me queres!

Despi-me com impudor,

Que é irmão do desespero.

Vê se me queres,

Sabendo que te não quero,

Nem te mereço,

Nem mereço ser amado

Pela pior

Das mulheres...

Poderás amar-me assim,

(Como explicar-me?!)

Por Qualquer Cousa que eu for,

Mas não por mim!, não a mim...!

 

Beijo-te os pés, meu amor.

 

                            José Régio

 


 

Adeus

 

Vai-te, que os meus abraços te magoaram,

E o meu amor não beija!, arde e devora.

Foram-se as flores do meu jardim. Ficaram

Raízes enterradas, braços de fora...

 

Vai-te! O luar é para os outros; e os afagos

São para os outros..., os que ensaiam serenatas.

Ja a Lua que nos lagos bóia pérolas e pratas

Não nasce para mim, que estou sem lagos.

 

Quando me nasce, é como um reluzir da treva,

Um riso da escuridão

Que na minh’alma ecoa, e que ma leva

Por lonjuras de frio e solidão...

 

 Vai-te, como vão todos; e contentes, de libertos

Do peso de eu lhes não queres trautear mentiras.

Como serias tu, flébil flor de olhos de safiras,

Que me acompanharias nos desertos?

  

Vai-te! não me supliques que te minta!

Beijo-te os pés pelo que me oferecias.

Mas teu amor, e tu, e eu, e quanto eu sinta,

Que somos nós mais do que fantasias?

 

Sim, amor meu: em mim, teu amor era doce.

Premir na minha mão a concha nácar do teu seio

Era-me um bem suave enleio...

Era... - se o fosse.

 

Vai-te!, que eu fui chamado a conquistar

Os mundos que há nos fundos do meu nada.

Talvez depois reaprenda a inocência de amar...

Talvez... mas ai!, depois de que alvorada?

 

Porque até Lá, é longe; e é tão incerto,

Tão frio, tão sublime, tão abstracto, tão medonho...

Como dar-te a sonhar este sonho dum sonho?

 

- Vai-te! a tua casa é perto.

 

                                 José Régio

 


 

Ámen

 

No circo cheio de luz

Há tanto que ver!...

 

«Senhores!»

— Grita o palhaço da entrada,

Todo listrado de cores —

«Entrai, que não custa nada!»

«À saída é que se paga»

 

(E eu sou aquele palhaço

Com listras!, e estardalhaço,

Chamando público...)

 

Na arena,

Está toda a companhia.

E o público contracena

Com a arena,

Como a arena com o público,

Agonias de alegria...

 

Uma bailarina dança.

A bailarina que dança

Já correu França e Aragança

Dançando do mesmo modo

Com todo o seu corpo todo.

 

Mas sempre, de cada vez,

Seu pés,

Seus voláteis pés,

Tiveram diverso modo

De raptar da mesma forma

Seu corpo todo!

 

Os seus movimentos de hoje

São, talvez, iguais aos de ontem,

Aos olhos de quem não vê

Que o gesto feito uma vez

Já se não faz como fez.

 

Ai!, a vida!

E eu que ouvi que a vida é um dia!

Mas acaba e principia

A cada instante do dia...

 

(E eu também sou bailarino:

Também danço!;

Também não tenho descanso;

Também cá vivo fingindo

Que só vivo repetindo,

Muito embora

Saiba como a toda a hora

Vario e crio,

Ruo e fluo,

Como um rio...)

 

Na plateia, um homem bêbado

Tem olhos vítreos do vinho.

Seus olhos vítreos

Pegaram-se às pernas ágeis

Da bailarina.

Seu olhar que foi subindo

A foi despindo...

E ali a cara de todos

Aquele bêbado a goza,

Gemendo, arquejando, rindo...

 

... De tal modo,

Que, súbito, o circo todo

é um grande leito em festa, a receber

O espasmo daquele homem

Que possui essa mulher.

 

Que mentira e que verdade

Que é a vida!

 

(E eu sou, também, esse bêbado

Que a força de desejar

Transformou em realidade

O seu desejo.

Na verdade...,

Sim, na verdade, não vejo

Porque me não enganar...)

 

O acrobata, que belo,

Cinturado de amarelo!

Que belo

Ser acrobata!

Seu corpo é de oiro e de prata,

Com fogo e gelo a correr...

Pendurado do trapézio,

Crucificado no ar,

Causa angústia e faz prazer

Ver esse corpo bailar,

Voar

Entre a vida e a morte...

 

E é belo ser assim forte,

Ficando assim delicado.

 

Ora esse alado elegante

Que sorri com tal desplante

Tem, no entanto,

Há já tanto!,

Uma loucura com ele

Que o impele:

Quer subir

Até onde puder ir;

Além do que puder ir;

Mais e mais!

Seus belos saltos mortais

Desenham cada vez mais

Voos cada vez mais trágicos.

Até que ele há-de chegar

À tristíssima vitória

De não ter mais que avançar.

 

Então...,

Ele há-de, ainda, sorrir.

Ora verão!

E há-de deixar-se cair.

 

E há-de deixar-se cair,

Do sétimo céu ao chão.

 

Ai!, a vida!

Poema da Tentação...

 

(E eu sou aquele acrobata:

Não subi nem me exibi;

Não me tapei de amarelo,

Nem meu corpo é de oiro e prata,

Nem eu sou belo...

Tenho dó de não ser belo!

Mas sou aquele acrobata.)

 

Ri, palhaço!

 

O palhaço entrou em cena,

Ri, cabriola, rebola,

Pega fogo à multidão.

 

Ri, palhaço!

 

Corpo de borracha e aço,

Rebola como uma bola,

Tem dentro não sei que mola

Que pincha, emperra, uiva, guincha,

Zune, faz rir!

 

Ri, palhaço!

 

Ri..., ri de ti para os outros,

Ri dos outros para ti,

Ri de ti para ti... ri!,

Ri dos outros para os outros...,

Ri, arre!, ri, irra!, ri!

 

Não!, que não!, que eu não lamente

Quem então, mesmo que o tente,

Não deixa de se exprimir

Tão brutalmente.

 

Palhaço, ri!

 

Eu não sei ter dó de ti:

Por miserável que seja,

Não se tem dó do que é belo.

 

(... Porque,

Será preciso dizê-lo?,

Também sou esse palhaço

Feito de borracha

E aço...)

 

Ai!, a vida!

Que trambolhões na subida,

Que ascenções pela descida...!

 

Entre os mil espectadores,

Encolhido,

Pequenino,

— Meu menino, ino, ino... —

Sim, fixo aquele menino.

 

Seus olhos, duas estrelas,

Acesinhos como velas

E maiores

Que os dos mais espectadores,

São de Menino Jesus

Que dá lição aos doutores.

 

Esses olhos fazem luz

Sobre todo o circo... São

Duas varas de condão.

 

Eis como, a luz que eles dão,

Tudo, em redor, se enriquece

De outra significação:

 

Que linda história de fadas

Se não vai desenrolando!,

Com princesas encantadas

Desencantadas,

E jovens reis escalando

Que muralhas invencíveis

Ao ritmo de árias terríveis,

Enquanto um príncipe excêntrico

Engole espadas e chamas,

Vem divertir o seu povo,

Trava prélios

Com dragões,

Gigantes,

Bruxas,

Anões,

—Criações

Dum mundo novo...

 

Ai!, a vida!

Maravilhosa historieta!

 

(E eu sou aquele menino:

Sou poeta...)

 

Mas em frente,

Do outro lado da arena,

Certa cara mascarada

Foca a cena:

Mascarada de silêncio,

De serenidade e enigma.

 

Bailados e acrobacias,

Amazonas e corcéis,

Músicas, luzes, e cores,

— Não me parecem que existam

Naqueles ouvidos surdos

E naqueles olhos foscos

De lágrimas,

Sangue,

Suores...

 

Quem é que ali sabe a história

Destes olhos esvaziados.

Dessa testa de sepulcro,

Daqueles lábios selados?

 

Poque está ali essa máscara,

Sozinha na multidão,

Fechada no seu caixão

De solidão e silêncio?...

 

E ai, minha mãe e meu pai!,

Todos que me quereis... ai

Que eu sou também, afinal,

Todo esse frio mortal...!

 

... Porque eu sou tudo!, — afinal.

 

E, mais do que bailarino,

Clown, acrobata, menino,

Bêbado ou esfinge, sou

A terra,

O chão que eles pisam,

E o pó que sobe e os envolve...

Moro lá em baixo, enterrado,

Muito lá em baixo!, e calado.

Pairo por cima ondulando,

Ando

No ar

Espalhado...

 

Ai!, a vida!

 

Que a vida não tem limites,

E quem vive não tem paz,

Menino, por mais que sonhes!,

Por mais que desejes, bêbado!,

Palhaço, por mais que grites!,

Por ais que vás, acrobata!,

Por mais que vás...!

 

Ai!, a vida!

 

... Assi, me surge tão bela,

Tão digna de ser vivida,

Sorvida

Até se esgotar,

Que eu sei que é faminto dela

Que me hei-de matar.

 

                       José Régio

 


 

Poema do Silêncio

  

Sim, foi por mim que gritei.

Declamei,

Atirei frases em volta.

Cego de angústia e de revolta.

 

Foi em meu nome que fiz,

A carvão, a sangue, a giz,

Sátiras e epigramas nas paredes

Que não vi serem necessárias e vós vedes.

 

Foi quando compreendi

Que nada me dariam do infinito que pedi,

-Que ergui mais alto o meu grito

E pedi mais infinito!

 

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,

Eis a razão das épi trági-cómicas empresas

Que, sem rumo,

Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

 

O que buscava

Era, como qualquer, ter o que desejava.

Febres de Mais, ânsias de Altura e Abismo,

Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

 

Que só por me ser vedado

Sair deste meu ser formal e condenado,

Erigi contra os céus o meu imenso Engano

De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

 

Senhor meu Deus em que não creio!

Nu a teus pés, abro o meu seio

Procurei fugir de mim,

Mas sei que sou meu exclusivo fim.

 

Sofro, assim, pelo que sou,

Sofro por este chão que aos pés se me pegou,

Sofro por não poder fugir.

Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

 

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!

(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)

Senhor dá-me o poder de estar calado,

Quieto, maniatado, iluminado.

 

Se os gestos e as palavras que sonhei,

Nunca os usei nem usarei,

Se nada do que levo a efeito vale,

Que eu me não mova! que eu não fale!

 

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,

Era por um de nós. E assim,

Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,

Lutava um homem pela humanidade.

 

Mas o meu sonho megalómano é maior

Do que a própria imensa dor

De compreender como é egoísta

A minha máxima conquista...

 

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros

Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,

E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,

E sobre mim de novo descerá...

 

Sim, descerá da tua mão compadecida,

Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.

E uma terra sem flor e uma pedra sem nome

Saciarão a minha fome.

 

                                    José Régio

 


 

 

Toada de Portalegre

 

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Morei numa casa velha,

Velha, grande, tosca e bela,

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...

 

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

 - Quis-lhe bem, como se fora

Tão feita ao gosto de outrora

Como ao do meu aconchego.

 

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De montes e de oliveiras,

Do vento soão queimada,

(Lá vem o vento soão!,

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão...)

Em Portalegre, dizia,

Cidade onde então sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Na tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela,

Tinha, então,

Por única diversão,

Uma pequena varanda

Diante duma janela.

 

Toda aberta ao sol que abrasa,

Ao frio que tolhe, gela,

E ao vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda

De redor da minha casa,

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Era uma bela varanda,

Naquela bela janela!

 

Serras deitadas nas nuvens,

Vagas e azuis da distância,

Azuis, cinzentas, lilazes,

Já roxas quando mais perto,

Campos verdes e amarelos,

Salpicados de oliveiras,

E que o frio, ao vir, despia,

Rasava, unia

Num mesmo ar de deserto

Ou de longínquas geleiras,

Céus que lá em cima, estrelados,

Boiando em lua, ou fechados

Nos seus turbilhões de trevas,

Pareciam engolir-me

Quando, fitando-os suspenso

De aquele silêncio imenso,

Eu sentia o chão fugir-me,

- Se abriam diante dela,

Daquela

Bela

Varanda

Daquela

Minha

Janela,

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Na casa em que morei, velha,

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

À qual quis como se fora

Tão feita ao gosto de outrora

Como ao do meu aconchego...

 

Ora agora,

Que havia o vento soão

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão,

Que havia o vento soão

De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,

Cidade onde então sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Que havia o vento soão

De fazer,

Senão trazer

Àquela

Minha

Varanda

Daquela

Minha

Janela

O testemunho maior

De que Deus

é protector

Dos seus

Que mais faz sofrer?

 

Lá num craveiro que eu tinha,

Onde uma cepa cansada

Mal dava cravos sem vida,

Poisou qualquer sementinha

Que o vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda,

Achara no ar perdida,

Errando entre terra e céus...,

E, louvado seja Deus!,

Eis que uma folha miudinha

Rompeu, cresceu, recortada,

Furando a cepa cansada

Que dava cravos sem vida

Naquela

Bela

Varanda

Daquela

Minha

Janela

Da tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...

 

Como é que o vento soão

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão,

Me trouxe a mim que, dizia,

Em Portalegre sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Me trouxe a mim essa esmola,

Esse pedido de paz

Dum Deus que fere... e consola

Com o próprio mal que faz?

 

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for

Me davam então tal vida

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Me davam então tal vida

- Não vivida!, mas morrida

No tédio e no desespero,

No espanto e na solidão -

Que a corda dos derradeiros

Desejos dos desgraçados

Por noites do vento soão

Já várias vezes tentara

Meus dedos verdes suados...

 

Senão quando o amor de Deus

Ao vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda,

Confia uma sementinha

Perdida entre a terra e céus,

E o vento a traz à varanda

Daquela

Minha

Janela

Da tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela!

 

Lá no craveiro que eu tinha,

Onde uma cepa cansada

Mal dava cravos sem vida,

Nasceu essa acàciazinha

Que depois foi transplantada

E cresceu, dom do meu Deus!,

Aos pés lá da estranha casa

Do largo do cemitério,

Frente aos ciprestes que em frente

Mostram os céus,

Como dedos apontados

De gigantes enterrados...

 

Quem desespera dos homens,

Se a alma lhe não secou,

A tudo transfere a esprança

Que a humanidade frustrou:

E é capaz de amar as plantas,

De esperar nos animais,

De humanizar coisas brutas,

E ter criancices tais,

Tais e tantas!,

Que será bom ter pudor

De as contar seja a quem for.

 

O amor, a amizade, e quantos

Sonhos de cristal sonhara,

Bens deste mundo, que o mundo

Me levara,

De tal maneira me tinham,

Ao fugir-me,

Deixado só, nulo, atónito,

A mim, que tanto esperara

Ser fiel,

E forte,

E firme,

Que não era mais que morte

A vida que então vivia,

Auto-cadáver...

 

E era então que sucedia

Que em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Aos pés lá da casa velha

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

 

- A minha acácia crescia.

 

Vento soão!, obrigado

Pela doce companhia

Que em teu hálito empestado,

Sem eu sonhar, me chegava!

E a cada raminho novo

Que a tenra acácia deitava,

Será loucura!..., mas era

Uma alegria

Na longa e negra apatia

Daquela miséria extrema

Em que eu vivia,

E vivera,

Como se fizera um poema,

Ou se um filho me nascera.

 

                             José Régio