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Elsinore
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore
E há palavras nocturnas palavras
gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever de falar
Mário Cesariny

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Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram me se
vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos
abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello
Breyner

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Trova Do Vento Que Passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e
o vento cala a desgraça
o
vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e
os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai
rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se
o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao
trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi
florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E
a quem gosta de ter amos
vi
sempre os ombros curvados.
E
o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi
a minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi
meu poema na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(Portugal à flor das águas)
vi
minha trova florir
(verdes olhos verdes mágoas).
Há
quem te queira ignorada
e fale
pátria em teu nome.
Eu
vi-te crucificada
nos
braços negros da fome.
E o
vento não me diz nada
só o
silêncio persiste.
Vi a
minha pátria parada
à
beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se
notícias vou pedindo
nas
mãos vazias do povo
vi
minha pátria florindo.
E a
noite cresce por dentro
dos
homens do meu país.
Peço
notícias ao vento
e o
vento nada me diz.
Mas há
sempre uma candeia
dentro
da própria desgraça
há
sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo
na noite mais triste
em
tempo de servidão
há
sempre alguém que resiste
há
sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre

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Na
grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre como tu
oh diz-me quem sou eu
quem és tu?
António Ramos Rosa

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Urgentemente
É
urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas
palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar
alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio
de Andrade

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Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão

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Pedra filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão
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na hora de pôr a mesa,
éramos cinco:
o meu pai, a
minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois,
a minha irmã mais velha
casou-se.
depois, a minha irmã mais nova
casou-se.
depois o meu pai morreu. hoje,
na hora de põr
a mesa, somos cinco,
menos a minha
irmã mais velha que está
na casa dela,
menos a minha irmã mais
nova que está
na casa dela, menos o meu
pai, menos a
minha mãe viúva, cada um
deles é um
lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho.
mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr
a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de
nós for vivo, seremos
sempre cinco.
José Luis Peixoto

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todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor
nao serve de nada. ficaram só
os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a a
cinza dos cigarros e da morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos
não foram suficientes e foram
demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto,
são como lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te
encontrar em cada instante, em cada hora,
não irei negar isso. não irei negar nunca que te
amei. nem mesmo quando estiver deitado,
nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a
dizer que a amo antes de a foder.
José Luis Peixoto

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A uma rapariga
A uma
rapariga
Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.
Nessa estrada de vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!
Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!
Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste de uma flor!...
Florbela
Espanca

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